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Cinéfilos Anónimos

Cinéfilos Anónimos

segunda-feira, abril 13, 2009

Musicais


Aliando a música ao processo narrativo, os musicais assumem um género cinematográfico cuja probabilidade de desiludir o público, numa perspectiva meramente pessoal, é diminuta. Contudo, não colhe junto das massas a mesma opinião, acabando por ser, não raras vezes, um género negligenciado. De acordo com Graeme Turner (1997), “a grande virtude do musical — além de sua óbvia exploração do som – era poder oferecer o prazer do cinema e do vaudeville ao mesmo tempo”, oferecendo-se a possibilidade de se desfrutar de um momento artístico de entretenimento pleno. Filmes como “Singing in the rain” (1952), “Westside Story” (1961) ou “Grease” (1978), entre outros, assumem-se como musicais relevantes na história do cinema.
Num esforço de síntese, segue-se uma selecção de alguns musicais que se situa entre o pessoal (já que são filmes que se encontram entre os nossos musicais favoritos) e o aleatório (uma vez que o processo de selecção obrigou à acentuada redução da lista e que tínhamos que assumir algum critério).

Jesus Christ Superstar (1973)

Realizada por Norman Jewison, a opera-rock da autoria de Andrew Lloyd Webber “Jesus Christ Superstar” versa sobre os últimos dias da vida de Jesus Cristo na perspectiva de Judas. Originalmente encenada para o teatro, a peça foi adaptada para o cinema, embora se mantenha fiel a alguns aspectos da primeira forma que tomou, designadamente o espectador assiste ao momento de caracterização das personagens e são conservados os cenários (não existindo uma preocupação de dotar a história de realismo quanto aos edifícios ou mesmo quanto ao rigor da indumentária). Com efeito, é revisitada a história deste importante símbolo religioso num ambiente característico das décadas de 60/70, pautado pela energia musical e pela crítica social perspicaz. Parece ser feita a apologia de uma fé reforçada pela reflexão que está implícita ao processo de questionamento ao qual o musical convida. Pela voz de Judas, Simão e Maria Madalena (entre outros) somos levados a discernir acerca do papel deste homem na história mundial (chegando a sugerir-se que os objectivos de uma missão de paz saíram prejudicados em favor da popularidade), a debater em torno dos estereótipos que também alimentam um credo que prega a igualdade, a reflectir acerca dos limites do fanatismo religioso e/ou da legitimidade da guerra.

Música Favorita: “Heaven on their minds” ou “Superstar”


Moulin Rouge (2001)

Contou com as performances de Nicole Kidman e de Ewan McGregor e obteve o reconhecimento do público e da Academia, tendo feito regressar o género musical de volta aos Oscars. “Moulin Rouge”, realizado por Baz Luhrmann, retrata a realidade boémia do século XIX de uma forma contemporânea, com recurso a elementos musicais de cultura popular, tais como “Like a Virgin” de Madona, “Roxane” de Sting ou “Your Song” de Elton John. Da comicidade ao romantismo, tomando a teatralidade como estilo, trata-se de um filme que se pauta pelos seus energia e ritmo.

Música Favorita: adaptação de “Roxane”

Rent (2005)


Constituindo, originalmente, uma peça musical da Broadway, “Rent”, realizado por Chris Columbus, passou às salas de cinema em 2005 (nunca tendo chegado às salas portuguesas). O filme conta os acontecimentos passados num ano na vida de um grupo de amigos, deixando o espectador a braços com questões que se prendem com a mensurabilidade (em horas? em lutas? em metros? em afecto?...) e efemeridade (ou imprevisibilidade) da vida. Trata-se de um filme versátil em termos das temáticas centrais: desde os impactes sociais da Sida, à dinâmica e instabilidade do processo criativo, passando pelos objectivos/projectos de vida das diferentes personagens e pelo(s) significado(s) que vão atribuindo às vivências. Estas são abordadas a um ritmo equilibrado que envolve e faz com que o público experimente momentos de ânimo e diversão intercalados com momentos de introspecção e insight.

Música Favorita: “Seasons of Love” ou “La vie Boheme”

Dr. Horrible’s Sing-Along Blog (2008)

Recriando os estereótipos que conhecemos das histórias, retomando as figuras do vilão, da donzela e do herói, “Dr. Horrible’s Sing.Along Blog” é um musical realizado por Joss Whedon (argumentista da aclamada série “Buffy – The Vampire Slayer”, onde integrou um episódio musical brilhantemente conseguido – “Once more with feeling”), com o poder de subverter, através do tom humorístico, os significados a estas inerentes, bem como à linearidade e harmonia dos finais felizes. É-nos apresentado um herói egocêntrico e corrupto, uma donzela de amor dividido e um vilão em construção (protagonizado por Neil Patrick Harris) cujo fito consiste em integrar a “Evil League of Evil”. Trata-se de uma obra de baixo-orçamento, escrita durante o período de greve dos argumentistas, que contou com a participação de actores convidados. Os três webisódios do musical foram lançados e estiveram disponível online durante um período específico de tempo após o qual poderiam ser adquiridos e cujas receitas se destinariam ao pagamento das despesas do filme.

Música favorita: “On the rise”


Ficam por aprofundar, obras como “Música no Coração” de 1965 (Música favorita: “My favorite things”), “Hair” de 1979 (Música favorita: “Aquarius”), “Annie” de 1982 (Música Favorita: “It’s the hard-knock life”), “Chicago” de 2002 (Música favorita: “He had it comin”), … …

Pontos de partida…
… qual a vossa posição pessoal em relação aos musicais?
… o que mais vos afasta e/ou aproxima do género?
… quais são os vossos musicais favoritos?

terça-feira, abril 07, 2009

Um filme que... surpreendeu

AS 13 ROSAS






Realizado por Emílio Martinez Lázaro, este filme espanhol datado de 2007, cuja história se enquadra historicamente no período da Guerra Civil Espanhola, conta com desempenhos de qualidade e constitui um documento tão rico como desconcertante, não só em torno da época como também, e sobretudo, revelador do poder interventivo da palavra, da determinação e do Homem que acredita.
Mais informações aqui.



domingo, março 22, 2009

Falar sobre cinema

O realizador português António Pedro Vasconcelos foi entrevistado num programa da RTP2 (17 de Fevereiro de 2009, 23h30).

Descreveu-se como “um homem das Letras e das Artes” que oscilava entre “um lado depressivo e um lado eufórico, vital”. Referiu que, tendo abandonado o curso superior de Direito (uma herança familiar), “começou pela Literatura”, embora antecipasse que a optar pelo investimento neste domínio, alimentaria o seu “lado depressivo”. Assim, nas palavras do realizador, foi o cinema que lhe “deu o lado vital”, explicando que “o cinema convive com as pessoas (…) não filmamos sozinhos, apesar de estarmos sós (…) na literatura vivemos absolutamente solitários”.
Quando “descobriu” que a sua vida profissional passaria obrigatoriamente pelo cinema, beneficiando de uma bolsa de formação por parte da Fundação Calouste Gulbenkian, viajou para Paris onde frequentou o curso superior de Filmografia. Descreveu que, num período de 2 anos, viu mais de 2000 filmes.

Confesso que não reconhecia o realizador, apenas conhecia o comentador desportivo. Durante a entrevista, foram algumas as expressões que me surpreenderam e/ou captaram a atenção. Não assegurando total fidelidade às reais palavras do cineasta (porque entre a recordação e a evocação há pormenores que se vão perdendo), gostaria de transcrever alguns momentos – sem o intuito de reforçar ou contrapor, mas antes de nos fazer falar sobre cinema.

[a propósito da literatura e do cinema]
“Descobri a literatura antes do cinema e ainda hoje, se tivesse que salvar, salvava o livro (…) a literatura é um milagre: criar emoções com sinais pretos dispostos numa folha branca (…) mas emociono-me mais com o cinema”.

[a propósito da comparação entre o público dos filmes de A.P. Vasconcelos e Manoel de Oliveira, sugerida pelo entrevistador]
“Não é possível comparar. Há maus filmes com público mas não creio que haja bons filmes sem público (…) Não há cinema sem público”.

[a propósito da crítica de cinema portuguesa]
“A crítica, em Portugal, não existe. (…) Um bom crítico deveria ir atrás das emoções e comentar em consonância com o que sente”.

[a propósito dos ingredientes de uma obra-prima]
“Ainda hoje me questiono acerca das razões que fazem de “E tudo o vento levou” o filme que é (…) acho que é porque cada personagem tem o que merece”.

[a propósito da provocação do entrevistador, na qual este sugeria que, se os filmes fossem todos justos se afastariam da realidade]
“os grandes cineastas são os que escrevem direito [referindo-se à justiça] por linhas tortas [referindo-se à realidade]”.

[a propósito do sucesso do filme “O lugar do Morto” (1984)]
“Não esperava tanto sucesso de um filme que sofreu tantas vicissitudes (…) a explicação que me foram apresentando prendeu-se com o facto dos espectadores considerarem que foi o primeiro filme português a ser um filme normal”

Ficam os pontos de partida:
Como caracterizariam a crítica sobre cinema que é feita em Portugal?
Que poder tem o público sobre o cinema? Que proporções entre a aceitação do público e a construção técnica de um filme?
Na vossa opinião, o que faz de um filme uma obra-prima?
Livro vs Filme – o que salvariam?

sábado, fevereiro 07, 2009

Arte em Série(s)


Se é verdade que, há uns anos, as séries televisivas eram tidas como uma “arte” menor comparativamente ao cinema, também o é temos vindo a assistir ao processo de crescimento, reconhecimento e afirmação das séries no panorama actual. Cada vez mais frequentemente: (1) nos deparamos com argumentos mais complexos e/ou melhor articulados (dos mais perspicazes em termos da crítica social, passando por uma comédia inteligente e audaz e/ou pela ficção científica questionante e reflexiva, chegando aos dramas mais realistas), (2) se torna claro que a necessidade de fidelização do público ajudou a definir a ficção para televisão como um género em que vale a pena apostar/investir; (3) assistimos a uma maior “permeabilidade” entre o mundo televisivo e o do cinema, nomeadamente tendo em conta a participação de reconhecidas caras do cinema em séries televisivas (e vice-versa), o que, há uns anos, era tido como (quase) desprestigiante.


A título de exemplo, quanto este ultimo ponto, podem ressaltar-se os casos do realizador Quentin Tarantino (responsável pelo episódio final da série CSI) ou da galardoada com um Óscar em 2008 pelo argumento do filme Juno, Diablo Cody que se estreou recentemente na televisão com a série United States of Tara.


Assumindo-me, igualmente, como uma fã recente de séries, proponho-me a fazer um breve comentário a algumas das minhas séries de eleição:


How I met your mother (Foi assim que aconteceu)


Um humor descontraído e a aparente simplicidade inerente aos relacionamentos entre amigos são os ingredientes principais desta série (que já vai na 4.ª temporada) que se organiza em torno da revelação do início da história de amor dos pais, narrada pelo pai aos filhos. Com efeito, são contados pormenorizadamente, os momentos mais marcantes da vida de cinco amigos – Ted, Lilly, Marshal, Robin e Barney – vividos em conjunto. Assumindo o ridículo, cada personagem denuncia as preocupações e sentimentos do nosso quotidiano. Será este um alerta que nos convida a procurar o humor que existe nos nossos gestos mais pequenos ou, sem qualquer pretensão, apenas um incentivo a desfrutarmos de 20 minutos de total despreocupação? Efectivamente, a série assume-se enquanto puro entretenimento, não parecendo ter qualquer preocupação de ordem social, nem o intuito de “educar” o público. Trata-se, desta forma, de uma série acerca de “nada” (aproximando-se do formato apresentado por Seinfeld), cuja continuidade é garantida pela constante expectativa de, finalmente, conhecermos a identidade da mãe dos filhos do narrador.


Grey’s Anatomy (Anatomia de Grey)


Toma a Medicina como pretexto, mas serve-se dos relacionamentos e dos dilemas das personagens para atrair a nossa atenção e reflexão. Uma comédia dramática (atrevo-me a chamar-lhe assim) que disseca em torno das implicações que a nossa personalidade pode ter no nosso trabalho (ou será, acerca do modo como a nossa profissão pode moldar aquilo que somos, com base naquilo que vivemos), do processo de comunicação humana (quantas vezes revelamos o nosso amor através da agressividade? Ou quantas vezes o escondemos com indiferença para não demonstrar vulnerabilidade?) e do significado da vida (ou do amor na nossa vida?)… A escolha dos protagonistas (Meredith e Derek) deixa muito a desejar (tamanha é a inexpressividade), mas deparamo-nos com personagens extremamente fortes e ricas.


Lost (Perdidos)


Tendo iniciado, na quarta-feira, a sua 5.ª temporada na América, Lost centra-se numa história envolta num clima de total mistério. Após o despenhamento do avião no qual viajavam, os sobreviventes vêem-se obrigados a viver numa ilha, aparentemente impossível de localizar. O processo de socialização e de sobrevivência é descrito de uma forma vivencial, podendo o realismo sair comprometido pela forte componente de ficção científica que a série encerra.


Brothers & Sisters (Irmãos e Irmãs)


De uma forma concreta e aparentemente simplista, trata-se de uma história acerca de uma família. Afirmo-o, acreditando que nenhum relacionamento (muito menos, no que diz respeito à vivência diária de uma família nuclear) é linear ou descomprometido. Enquadrada num contexto claramente americano, são também abordadas questões políticas e sociais da máxima relevância (não só declarando a controvérsia, como assumindo posições e, desta forma, provocando um desequilíbrio questionante junto do espectador). Na sua 3.ª temporada, Brothers & Sisters leva-nos a revisitar as nossas concepções de família e a nossa própria vivência dos laços, favorecendo a adopção de uma posição crítica, mas proactiva em relação a nós próprios e “aos nossos” – tudo isto, abrilhantado pelo humor presente nos diálogos e pelo carácter especial e único de cada personagem.


Six Feet Under (Sete Palmos de Terra)


Foi numa postura resistente que comecei a seguir esta série. Falar da morte ou enfrentar o medo não é propriamente convidativo, ou é-o para poucos. Acresce a este facto, o da série ter o poder de, não só desmistificar a morte e os nossos receios de perda, como de extrapolar o tema num esforço de valorização da vida! Incontável e inesgotável num parágrafo, a série encerra em si um potencial reflexivo e profundamente transformador.




Muitas outras há por referenciar (não o faço por desconhecimento), pelo que deixo os desafios:
Que estilo mais vos atrai?
Que séries acompanham e porquê?

terça-feira, fevereiro 03, 2009

(Psi)nema

O mote foi lançado – de que forma a Psicologia ou a Psiquiatria podem ser ciências que alimentam os argumentos cinematográficos? – e, para já, a dispersão impera!

Efectivamente – sabendo que qualquer definição se revelará profundamente redutora –, tratando-se a Psicologia e a Psiquiatria de ciências psicológicas, estas centram-se no estudo (dos modos de lidar com a) da vida; dos indivíduos em relação com o(s) seu(s)mundo(s) e com as suas relações, enfatizando as suas vertentes cognitiva, emocional e comportamental.

Tomando posse das palavras do realizador italiano Fellini, se “o cinema é um modo divino de contar a vida”, então o cinema pode assumir-se como arena, ferramenta, veículo ou motivo para as aprendizagens neste(s) âmbito(s) científico, bem como este(s) se podem constituir como matéria-prima a elaborar e reflectir nos argumentos cinematográficos.

Para responder, de forma concreta e objectiva, à questão que serve de propósito a este post, poderia optar por começar pelas evidências, por enumerar as obras cinematográficas que tomaram a psicopatologia (e.g., “Voando sobre um ninho de cucos”, 1975; “Encontro de Irmãos”, 1988; “O Príncipe das Marés”, 1991; “Mr. Jones”, 1993; “Trainspotting”, 1996; “Melhor é impossível”, 1997; “Vida Interrompida”, 1999; “Uma mente brilhante”, 2001; “Pela mão do senhor”, 2001; “As Horas”, 2002; “O Aviador”, 2004; …), ou mesmo as relações terapêuticas (e.g., “Uma questão de nervos”, 1999; “Terapia de Choque”, 2003; “Terapia do Amor”, 2003) como premissa. Poder-se-ia, ainda, fazer referência à filmografia que se centra em aspectos relacionados com assuntos prementes ao longo do desenvolvimento – como sendo as relações, a parentalidade (e.g., “O Clube dos Poetas Mortos”, 1989; “Charlie e a fábrica de Chocolate”, 2005; “Em busca da Felicidade”, 2006;), o mundo da formação (ver aqui), o mundo do trabalho (e.g., “Às segundas ao sol”, 2002;), as perdas (e.g., “As confissões de Schmidt”, 2002;), … – e com o impacte dos mesmos, em termos psicológicos, para os indivíduos. Haveria, igualmente, ainda algo a dizer acerca da utilização das obras cinematográficas enquanto instrumento/ferramenta com intuitos terapêuticos… Um tema inesgotável!

“O cinema é um modo divino de contar a vida” e a vida é o objecto de estudo das ciências psicológicas…

No entanto, ao explorar este tema, deparei-me com algumas questões: Será esta relação uma relação simbiótica ou parasita? Funcionará o cinema, quando versa estas questões, um instrumento de informação e educação – se é que tem que ser assim – ou um veículo reforçador de estereótipos e estigmas?

Estas perguntas emergem da análise, em retrospectiva, de alguns argumentos cinematográficos. A título de exemplo, questiono-me: será que o filme “Melhor é impossível” é relembrado pelas pessoas como um “bom-momento-de-comédia” (dada a comicidade que acaba por caracterizar a personagem, tendo em conta os comportamentos estereotipados que demonstra… sem que seja evidente, para os menos informados, o sofrimento implícito em cada um desses “tiques”), como um testemunho fiel da vivência das pessoas que sofrem de perturbação obcessivo-compulsiva? Ou o filme “Voando sobre um ninho de cucos”: prevalecerá como um documento enquadrado na história da psiquiatria (aludindo, de forma, marcada ao exercício de comparação e de tomada de consciência em torno da evolução dos serviços de saúde mental) ou como uma ameaça aterradora (dada a tensão, o carácter limitador da liberdade, o império da loucura que urge ser reprimida que é apresentado) para todos aqueles que sofrem os impactes (directa ou indirectamente) de uma doença mental? Recorrendo a um exemplo mais recente (embora se deva salvaguardar que a narrativa se encontra numa fase inicial e, por isso, pode vir a demonstrar-se precoce o comentário), tomemos a série escrita por Diablo Cody – United States of Tara. A série toma como protagonista uma personagem, cuja doença do foro psicológico que vivencia lhe confere a “possibilidade” de assumir diferentes personalidades (sem que isso seja controlável). A bizarria dos seus comportamentos faz com que a personagem se revista de uma natureza humorística que atrai o espectador, mas que pode estigmatizar a perturbação mental; isto é, poderá vir a reforçar a ideia de que a doença mental se aproxima da loucura e/ou da anormalidade.

Não defendo, com a explanação desta ideia, que o cinema deverá abandonar esta facção da vida (é caso para retomar a eterna questão: quem é normal, que atire a primeira pedra)… antes que, mesmo procurando na 7.ª arte o mero entretenimento, devemos reservar alguns momentos para pensar acerca do que acabamos de ver e para retirar desta experiência, como de todas as outras que vivemos, alguma(s) aprendizagem(s).



quarta-feira, janeiro 28, 2009

Blindness - A Líder com Visão

Há uns dias, uma leitora do blogue lançou-nos o repto de comentar sobre o significado da personagem da "mulher com visão", no filme e no livro de Fernando Meirelles e José Saramago, respectivamente. Há uns tempos, uma professora de Fundamentos de Estética propôs-me a realização de um trabalho em que descirnisse acerca da Alegoria da Caverna, de Platão, e elaborasse, sobre ela, uma actualização.

Como poderão ler de seguida, escolhi fazer o segundo sobre o primeiro*. 

Baseado na obra homónima de José Saramago,  “Blindness – O Ensaio Sobre a Cegueira” é um filme realizado por Fernando Meirelles, de 2008, e constitui o segundo título do primeiro autor que pode ser equiparado ao texto de Platão em estudo – isto é, embora tenha dedicado um outro livro, “A Caverna”, especificamente a esta alegoria, “O Ensaio sobre a Cegueira” apresenta referências análogas a esta narrativa, partilhando com ela o seu carácter de parábola; mais uma vez comprovando (assumindo que não era, já, óbvia) a transversalidade e a pluralidade do texto original de Platão, a sua actualidade e universalidade, e o facto de se constituir como uma importante referência para toda a produção artística que se assuma como um meio de comentar criticamente a sua contemporaneidade. 

As semelhanças entre os dois textos iniciam na formulação do motivo que serve de base ao desenvolvimento narrativo, e a sua intenção de definir uma contraposição entre os actos de ver e conhecer/compreender: em Platão, através da dicotomia entre o perceber as referências (as sombras, do mundo das aparências) ou o contactar com o seu referente, os objectos (verdadeiros, do mundo inteligível), colocando um grupo de prisioneiros, ignorantes, porque enclausurados e limitados a percepção de sombras; em “Blindness”, esta oposição, entre o ver funcional e o conhecer verdadeiramente, é transmitida pela amplificação de uma epidemia, que afecta toda uma comunidade que, imediatamente e sem causas biológicas, se encontra cega. Nesta medida, sendo verdadeira a noção de clausura metafórica, em Platão, também o será igualmente no que concerne à cegueira de Saramago/Meirelles: ambas as obras fazem uso do género da alegoria para comentar as limitações da mente humana – representada pelos prisioneiros que negam a verdade, e pelos cegos, que perdem a visão para que procedam a uma (re)aprendizagem dessa função (metaforicamente) sensorial –, em confrontação com a presença do filósofo, representado pelo prisioneiro libertado, materializado, em “Blindness”, pela mulher do médico, a única personagem que não é afectada pela mesma doença – que, como o prisioneiro-filósofo, virá a constituir as características do líder ideal, cuja visão, num contexto de cegueira, pode ser interpretada como a posse de conhecimento, vantagem que usa em favor dos outros e da comunidade que lidera (efectivando a sua liderança de uma forma prática e funcional, enfatizando a ideia de que a efectua de uma forma altruísta e não gananciosa). Nesta medida, em ambas as obras se encontra, igualmente, presente uma ideia de aceitação acrítica, quase dogmática, das condicionantes narrativas – os prisioneiros não questionavam as suas circunstâncias até ao momento em que um deles é libertado, da mesma forma que, apesar de se efectivar algum questionamento acerca das razões da cegueira, em momento algum se indaga a imunidade da líder com visão –; esta aceitação acrítica, com efeito, remete-nos para uma motivação alegórica: define e determina o carácter metafórico e referencial da narrativa – transmitindo a ideia da identificação dos cegos/prisioneiros com as massas, passivas em relação à busca da(o) visão imparcial/conhecimento verdadeiro.

Em “Blindness” – como, em Platão, os prisioneiros que ascendessem à superfície sofreriam do impacto e teriam que se adaptar ao sol – também as suas personagens passam por um momento de habituação, manifesto no âmbito social e comunitário, bem como de cada personagem em específico, que pode ser fragmentada em diversos momentos: o primeiro choque, motivado pelo contacto directo com uma nova realidade, gera confusão e resistência – o papel da mulher do médico, análogo ao do filósofo, é atenuar os efeitos deste impacto, partilhando o seu conhecimento; posteriormente, num segundo momento, enquanto comunidade, são forçados a proceder a diversas adaptações – aprendem a viver com a doença, adaptando-se às novas condições e aplicam novas regras a antigos sistemas para viver em sociedade (cujo equilíbrio, em virtude dos diferentes tipos de liderança postulados por Platão, terá mais ou menos sucesso quanto menor ou maior for a ganância do seu líder, respectivamente, como se recuperará posteriormente nesta reflexão). Com efeito, na Caverna de Platão, quando confrontado com a luz, o prisioneiro libertado experimenta dor – representando a sua dificuldade em reconhecer os referentes – ; em “Blindness”, não só o carácter espontâneo da epidemia lhes desencadeia incompreensão/confusão, como a cegueira, porque pressupõe habituação, implica uma resistência, física e de hábitos, à sua nova condição – também os cegos têm que aprender a orientar-se, num primeiro momento, sem recurso a um sentido que sempre tomaram como garantido, a visão. Nesta medida, é construído o significado da alegoria assente na ideia de que, tomada como garantida, a sua capacidade de visão era mal empregue, na medida em que estaria ao serviço da veiculação de ilusões (presente, igualmente, na obra de Platão): na caverna, esse carácter ficcional é canalizado na ideia de engano sensorial que o autor comenta no domínio do impedimento da obtenção de conhecimento verdadeiro (e útil, enquanto bom); em “Blindness”, a falsidade/infiabilidade da visão que possuíam anteriormente remete-nos para uma gestão errónea da importância que o homem se habituara a atribuir às coisas – isto é, quando as personagens recuperam a visão, apercebem-se de uma mudança na sua atribuição de valores às coisas que os rodeiam, que é subvertida. Desta forma, a sua recuperação da visão remete-nos para uma aprendizagem – uma educação – no sentido de ver o mundo com maior clareza, sem preconceitos e com maior humildade, análoga ao contacto com o conhecimento verdadeiro, na Caverna de Platão, materializado pela ascensão ao mundo da superfície. Com efeito, efectivada a educação como um processo, as mesmas consequências se verificam em ambas as obras: na alegoria da Caverna, o prisioneiro que contacta com a luz (o conhecimento), ultrapassado o choque motivado pela sua nova condição, procurará construir a partir da percepção da verdade – aprendendo a assumir a sua qualidade de ser racional, extrapolando, desta forma, a sua capacidade de conhecer numa perspectiva de desenvolver novas aptidões –;  em “Blindness”, verifica-se essa intenção de, já habituados às suas novas limitações físicas, assumindo a sua alienação em relação ao resto do mundo, proceder à formulação de novas regras válidas para viverem comunitariamente. Nessa perspectiva, a mulher do médico efectiva um papel instrumental: representa o prisioneiro libertado, uma líder a quem é concedida a capacidade de ver o mundo, na mesma medida que o filósofo ascendia ao mundo metafísico e compreendia-o verdadeiramente, porque tinha acesso ao verdadeiro conhecimento, desenvolvida a sua capacidade racional (de ver a verdade) – sabendo o que é verdadeiro, conhece o que é bom e pratica esse bem, que se materializa, em “Blindness”, no uso do conhecimento que possui em seu favor e ao serviço da sua comunidade. 

No entanto, a analogia entre as duas obras estende-se, igualmente, às reacções negativas imediatas à presença de uma personagem a quem é concedida a superioridade intelectiva (na Caverna) e a imunidade (em “Blindness”): da mesma forma que o comportamento do prisioneiro seria desajustado e este seria desacreditado, nesse medida, a mulher do médico procura, num primeiro momento, nunca revelar a sua visão. Em virtude das hipóteses conjuradas por Platão – de que, por atentar a um sistema definido, os demais prisioneiros poderiam reagir violentamente às novas asserções que o prisioneiro-filósofo pretenderia veicular a partir do conhecimento recentemente travado, matando-o –, o receio da personagem de “Blindness” justifica-se; previne-se, no entanto, ao ocultar a capacidade que mantém imaculada de ver,  ficando, em vez de fugir, numa perspectiva de confirmar, mais uma vez, o seu altruísmo – atenua-lhes a cegueira até uma restauração completa: educa-os a reformularem as suas vivências e adaptando-os à sua nova condição, como o filósofo que pretende universalizar o seu saber, regressando ao mundo das sombras depois de ter ascendido ao mundo do inteligível. Nesta medida, somos remetidos para a reflexão de Platão acerca das características de um bom líder e a sua aplicação na narrativa do filme: deve ter acesso ao conhecimento (no caso de “Blindness”, a personagem da mulher do médico tem acesso à visão), mas não deve procurar lucrar com o poder por si só nem usar esse conhecimento para o mal – estabelecendo-se o contraste entre esta personagem e o cego que já o era antes da epidemia, que canaliza a sua não necessidade de adaptação (o seu conhecimento prévio do que era a realidade desta condição) para efectivar o mal, capacidade esta que subjuga, em grande medida, a bondade da personagem da mulher do médico. Em virtude da fragmentação da nova sociedade que se cria no universo de “Blindness”, o facto de não se proceder à apresentação de um líder absoluto surge como um instrumento de comparação entre os diferentes tipos de liderança, postulados por Platão: verificam-se momentos do filme em que são descritas as reacções que o autor antevia na sua obra, nomeadamente, o facto de que a liderança motivada pela ganância gera lutas inúteis (de retenção do poder como se este fosse em si mesmo um grande bem); em confrontação com a comunidade liderada pela mulher do médico, cuja liderança altruísta apresenta uma construção sempre análoga à ideia da educação como um processo (procura construir a partir do poder – visão – que lhe é dado, procurando servi-los da sua capacidade autónoma, educando-os a partilhar dessa autonomia). No entanto, trata-se de um processo iniciado por motivação externa, remetendo-nos para a ideia de que a tomada de consciência do homem relativamente à necessidade de mudança só é materializada quando este é colocado numa situação em que revela o pior de si: sendo particularmente evidente no filme, em  os cegos apenas assumem a necessidade de ver tudo com outros olhos, quando a visão lhes é retirada abruptamente; mas verificando-se, igualmente, nos prisioneiros da caverna, que aceitam acriticamente a sua clausura, apenas posta em causa pela libertação (dogmática) e o regresso (altruísta) do prisioneiro-filósofo, em relação ao qual, por sua vez, reagem com violência e negação agressiva.

Nesta perspectiva, e em jeito de conclusão, a personagem da mulher do médico apresenta-se, assim, como uma metáfora do  filósofo, mas é-o igualmente dos papéis de espectador (do desenvolvimento narrativo de “Blindness”, que vê o que esta vê) e de leitor (da Alegoria da Caverna de Platão, que possui o distanciamento racional necessário a compreender o carácter referencial da obra): ao ver e ao ler, é-nos esperado que apreendamos a necessidade de mudar, buscando o conhecimento e usar a visão ao serviço do bem, a partir do momento em que ultrapassamos o choque (“as trevas” que nos inundam os olhos, como ao prisioneiro libertado) de nos confrontarmos com o comentário que estas alegorias pretendem veicular (ao regressar do sol). Neste âmbito, o final de “Blindness” – e do livro de Saramago –, embora apresentem a estrutura divergente, pretende veicular este mesmo pensamento: denota-se a situação contrária, na medida em que, depois de resolvida a trama, ultrapassado o carácter catastrófico, e recuperada a visão (biológica e metafórica), é que a líder com visão se apercebe de toda a dimensão das experiências motivadas pela epidemia; quando antes se deixava mover pela sobrevivência, depois dá-se a uma tomada de consciência, abrupta e extrema, das aprendizagens efectivadas durante todo aquele processo de educação – confronta-se, não com a possibilidade de se atingir o conhecimento verdadeiro e daí retirar-se a definição de bom (como na Alegoria da Caverna de Platão), mas com demonstrações múltiplas do que o que o ser humano consegue significar de pior. São, porém, algo paradoxalmente, estas as razões pelas quais deriva a necessidade e a relevância de uma e outra alegoria: assumir-se as limitações do ser humano (de ver para alem da ilusão e das aparências) e desconstruí-las numa perspectiva catártica – conhecer a verdade e o bem é possível, da mesma forma que o é, tornar a aprender a ver. 

*este foi um trabalho realizado no ano lectivo 2008/2009, na Universidade Católica Portuguesa - Porto

domingo, janeiro 25, 2009

Ensaio sobre a Cegueira


Realizado por Fernando Meirelles, “Ensaio sobre a Cegueira” (2008) é uma fiel adaptação da homónima obra do Nobel português da literatura José Saramago.


O espectador é confrontado com a enigmática e inquietante questão “e se um dia todos os homens cegassem” e convidado a assistir às cruas consequências da acção da simples natureza humana. Com efeito, trata-se de uma história assertiva (porque violenta), fantasiosa (porque excessivamente realista) e humana (porque monstruosa).


A aparente distância que separa os acontecimentos narrados da realidade expectável (é indubitavelmente mais confortável negar tal acontecimento, do que assimilar tão perturbante insight), fundamenta as duras críticas de que o filme foi alvo por parte da imprensa americana. O extremo ao qual o tema é explorado (chegando-se mesmo ao ponto de nos desejarmos mais identificados com o humanismo de um cão, comparativamente ao que assistimos como natureza da humanidade), faz despertar mecanismos de defesa e crer que a negação é, talvez, a única forma eficaz de lidar com a sujidade que povoa (ou pode povoar) a sociedade. Recorrendo-se a uma imagem forte da película, que parece encerrar em si o significado que se pretende aqui veicular, o facto da única personagem que nunca perdera a visão maldizer esta “benção” ou até quase desejar cegar, tal o sofrimento vivenciado pela imperatividade de assistir em primeiro plano a esta epidemia social.


Esta metafórica cegueira – podendo ser entendida como egoísmo ou ambição –, tem, ainda e talvez paradoxalmente, o poder de exaltar a pureza de sentimentos como o amor (assuma este a pele que desejarmos: passional, fraterno, parental, amistoso, …) ou de justificar a agressividade da vingança.


Não podendo (por total desconhecimento ou falta de sensibilidade) versar acerca de questões de carácter técnico, parece ser possível comentar em que medida algumas opções, neste âmbito, contribuem para a vivência sensitiva e emocional do espectador. A falta de visibilidade, a predominância de cores claras e a volatilidade dos limites físicos dos espaços e dos objectos, por exemplo, transmitem instabilidade e insegurança e, desta forma, uma maior proximidade com a vivência idiossincrática (embora interpretável) de cada personagem.


No que concerne à experiência pessoal de espectadora, talvez em nenhum outro filme tenha sentido a inquietação e/ou revolta que pude experimentar. Contrariamente à minha vontade, assisti ao filme antes de ter a oportunidade de ler a obra. Esta “ingenuidade” e atitude de entrega/abertura à experiência pode ter contribuído para o envolvimento ao qual me refiro em termos emocionais e avolumado o receio de não vir a aproveitar tudo o que a leitura (por vezes) acrescenta. Surpreendentemente, ler o “Ensaio sobre a Cegueira” após ter visionado a película elevou a experiência a um expoente indescritível –, para além de ter tomado consciência que a visão do autor foi integralmente respeitada pelo realizador, senti-me a rever uma dos melhores filmes da minha vida, podendo usufruir de comentários magnânimes (porque sábios, audazes, irónicos e vividos) de José Saramago!