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Cinéfilos Anónimos: Blindness - A Líder com Visão

Cinéfilos Anónimos

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Blindness - A Líder com Visão

Há uns dias, uma leitora do blogue lançou-nos o repto de comentar sobre o significado da personagem da "mulher com visão", no filme e no livro de Fernando Meirelles e José Saramago, respectivamente. Há uns tempos, uma professora de Fundamentos de Estética propôs-me a realização de um trabalho em que descirnisse acerca da Alegoria da Caverna, de Platão, e elaborasse, sobre ela, uma actualização.

Como poderão ler de seguida, escolhi fazer o segundo sobre o primeiro*. 

Baseado na obra homónima de José Saramago,  “Blindness – O Ensaio Sobre a Cegueira” é um filme realizado por Fernando Meirelles, de 2008, e constitui o segundo título do primeiro autor que pode ser equiparado ao texto de Platão em estudo – isto é, embora tenha dedicado um outro livro, “A Caverna”, especificamente a esta alegoria, “O Ensaio sobre a Cegueira” apresenta referências análogas a esta narrativa, partilhando com ela o seu carácter de parábola; mais uma vez comprovando (assumindo que não era, já, óbvia) a transversalidade e a pluralidade do texto original de Platão, a sua actualidade e universalidade, e o facto de se constituir como uma importante referência para toda a produção artística que se assuma como um meio de comentar criticamente a sua contemporaneidade. 

As semelhanças entre os dois textos iniciam na formulação do motivo que serve de base ao desenvolvimento narrativo, e a sua intenção de definir uma contraposição entre os actos de ver e conhecer/compreender: em Platão, através da dicotomia entre o perceber as referências (as sombras, do mundo das aparências) ou o contactar com o seu referente, os objectos (verdadeiros, do mundo inteligível), colocando um grupo de prisioneiros, ignorantes, porque enclausurados e limitados a percepção de sombras; em “Blindness”, esta oposição, entre o ver funcional e o conhecer verdadeiramente, é transmitida pela amplificação de uma epidemia, que afecta toda uma comunidade que, imediatamente e sem causas biológicas, se encontra cega. Nesta medida, sendo verdadeira a noção de clausura metafórica, em Platão, também o será igualmente no que concerne à cegueira de Saramago/Meirelles: ambas as obras fazem uso do género da alegoria para comentar as limitações da mente humana – representada pelos prisioneiros que negam a verdade, e pelos cegos, que perdem a visão para que procedam a uma (re)aprendizagem dessa função (metaforicamente) sensorial –, em confrontação com a presença do filósofo, representado pelo prisioneiro libertado, materializado, em “Blindness”, pela mulher do médico, a única personagem que não é afectada pela mesma doença – que, como o prisioneiro-filósofo, virá a constituir as características do líder ideal, cuja visão, num contexto de cegueira, pode ser interpretada como a posse de conhecimento, vantagem que usa em favor dos outros e da comunidade que lidera (efectivando a sua liderança de uma forma prática e funcional, enfatizando a ideia de que a efectua de uma forma altruísta e não gananciosa). Nesta medida, em ambas as obras se encontra, igualmente, presente uma ideia de aceitação acrítica, quase dogmática, das condicionantes narrativas – os prisioneiros não questionavam as suas circunstâncias até ao momento em que um deles é libertado, da mesma forma que, apesar de se efectivar algum questionamento acerca das razões da cegueira, em momento algum se indaga a imunidade da líder com visão –; esta aceitação acrítica, com efeito, remete-nos para uma motivação alegórica: define e determina o carácter metafórico e referencial da narrativa – transmitindo a ideia da identificação dos cegos/prisioneiros com as massas, passivas em relação à busca da(o) visão imparcial/conhecimento verdadeiro.

Em “Blindness” – como, em Platão, os prisioneiros que ascendessem à superfície sofreriam do impacto e teriam que se adaptar ao sol – também as suas personagens passam por um momento de habituação, manifesto no âmbito social e comunitário, bem como de cada personagem em específico, que pode ser fragmentada em diversos momentos: o primeiro choque, motivado pelo contacto directo com uma nova realidade, gera confusão e resistência – o papel da mulher do médico, análogo ao do filósofo, é atenuar os efeitos deste impacto, partilhando o seu conhecimento; posteriormente, num segundo momento, enquanto comunidade, são forçados a proceder a diversas adaptações – aprendem a viver com a doença, adaptando-se às novas condições e aplicam novas regras a antigos sistemas para viver em sociedade (cujo equilíbrio, em virtude dos diferentes tipos de liderança postulados por Platão, terá mais ou menos sucesso quanto menor ou maior for a ganância do seu líder, respectivamente, como se recuperará posteriormente nesta reflexão). Com efeito, na Caverna de Platão, quando confrontado com a luz, o prisioneiro libertado experimenta dor – representando a sua dificuldade em reconhecer os referentes – ; em “Blindness”, não só o carácter espontâneo da epidemia lhes desencadeia incompreensão/confusão, como a cegueira, porque pressupõe habituação, implica uma resistência, física e de hábitos, à sua nova condição – também os cegos têm que aprender a orientar-se, num primeiro momento, sem recurso a um sentido que sempre tomaram como garantido, a visão. Nesta medida, é construído o significado da alegoria assente na ideia de que, tomada como garantida, a sua capacidade de visão era mal empregue, na medida em que estaria ao serviço da veiculação de ilusões (presente, igualmente, na obra de Platão): na caverna, esse carácter ficcional é canalizado na ideia de engano sensorial que o autor comenta no domínio do impedimento da obtenção de conhecimento verdadeiro (e útil, enquanto bom); em “Blindness”, a falsidade/infiabilidade da visão que possuíam anteriormente remete-nos para uma gestão errónea da importância que o homem se habituara a atribuir às coisas – isto é, quando as personagens recuperam a visão, apercebem-se de uma mudança na sua atribuição de valores às coisas que os rodeiam, que é subvertida. Desta forma, a sua recuperação da visão remete-nos para uma aprendizagem – uma educação – no sentido de ver o mundo com maior clareza, sem preconceitos e com maior humildade, análoga ao contacto com o conhecimento verdadeiro, na Caverna de Platão, materializado pela ascensão ao mundo da superfície. Com efeito, efectivada a educação como um processo, as mesmas consequências se verificam em ambas as obras: na alegoria da Caverna, o prisioneiro que contacta com a luz (o conhecimento), ultrapassado o choque motivado pela sua nova condição, procurará construir a partir da percepção da verdade – aprendendo a assumir a sua qualidade de ser racional, extrapolando, desta forma, a sua capacidade de conhecer numa perspectiva de desenvolver novas aptidões –;  em “Blindness”, verifica-se essa intenção de, já habituados às suas novas limitações físicas, assumindo a sua alienação em relação ao resto do mundo, proceder à formulação de novas regras válidas para viverem comunitariamente. Nessa perspectiva, a mulher do médico efectiva um papel instrumental: representa o prisioneiro libertado, uma líder a quem é concedida a capacidade de ver o mundo, na mesma medida que o filósofo ascendia ao mundo metafísico e compreendia-o verdadeiramente, porque tinha acesso ao verdadeiro conhecimento, desenvolvida a sua capacidade racional (de ver a verdade) – sabendo o que é verdadeiro, conhece o que é bom e pratica esse bem, que se materializa, em “Blindness”, no uso do conhecimento que possui em seu favor e ao serviço da sua comunidade. 

No entanto, a analogia entre as duas obras estende-se, igualmente, às reacções negativas imediatas à presença de uma personagem a quem é concedida a superioridade intelectiva (na Caverna) e a imunidade (em “Blindness”): da mesma forma que o comportamento do prisioneiro seria desajustado e este seria desacreditado, nesse medida, a mulher do médico procura, num primeiro momento, nunca revelar a sua visão. Em virtude das hipóteses conjuradas por Platão – de que, por atentar a um sistema definido, os demais prisioneiros poderiam reagir violentamente às novas asserções que o prisioneiro-filósofo pretenderia veicular a partir do conhecimento recentemente travado, matando-o –, o receio da personagem de “Blindness” justifica-se; previne-se, no entanto, ao ocultar a capacidade que mantém imaculada de ver,  ficando, em vez de fugir, numa perspectiva de confirmar, mais uma vez, o seu altruísmo – atenua-lhes a cegueira até uma restauração completa: educa-os a reformularem as suas vivências e adaptando-os à sua nova condição, como o filósofo que pretende universalizar o seu saber, regressando ao mundo das sombras depois de ter ascendido ao mundo do inteligível. Nesta medida, somos remetidos para a reflexão de Platão acerca das características de um bom líder e a sua aplicação na narrativa do filme: deve ter acesso ao conhecimento (no caso de “Blindness”, a personagem da mulher do médico tem acesso à visão), mas não deve procurar lucrar com o poder por si só nem usar esse conhecimento para o mal – estabelecendo-se o contraste entre esta personagem e o cego que já o era antes da epidemia, que canaliza a sua não necessidade de adaptação (o seu conhecimento prévio do que era a realidade desta condição) para efectivar o mal, capacidade esta que subjuga, em grande medida, a bondade da personagem da mulher do médico. Em virtude da fragmentação da nova sociedade que se cria no universo de “Blindness”, o facto de não se proceder à apresentação de um líder absoluto surge como um instrumento de comparação entre os diferentes tipos de liderança, postulados por Platão: verificam-se momentos do filme em que são descritas as reacções que o autor antevia na sua obra, nomeadamente, o facto de que a liderança motivada pela ganância gera lutas inúteis (de retenção do poder como se este fosse em si mesmo um grande bem); em confrontação com a comunidade liderada pela mulher do médico, cuja liderança altruísta apresenta uma construção sempre análoga à ideia da educação como um processo (procura construir a partir do poder – visão – que lhe é dado, procurando servi-los da sua capacidade autónoma, educando-os a partilhar dessa autonomia). No entanto, trata-se de um processo iniciado por motivação externa, remetendo-nos para a ideia de que a tomada de consciência do homem relativamente à necessidade de mudança só é materializada quando este é colocado numa situação em que revela o pior de si: sendo particularmente evidente no filme, em  os cegos apenas assumem a necessidade de ver tudo com outros olhos, quando a visão lhes é retirada abruptamente; mas verificando-se, igualmente, nos prisioneiros da caverna, que aceitam acriticamente a sua clausura, apenas posta em causa pela libertação (dogmática) e o regresso (altruísta) do prisioneiro-filósofo, em relação ao qual, por sua vez, reagem com violência e negação agressiva.

Nesta perspectiva, e em jeito de conclusão, a personagem da mulher do médico apresenta-se, assim, como uma metáfora do  filósofo, mas é-o igualmente dos papéis de espectador (do desenvolvimento narrativo de “Blindness”, que vê o que esta vê) e de leitor (da Alegoria da Caverna de Platão, que possui o distanciamento racional necessário a compreender o carácter referencial da obra): ao ver e ao ler, é-nos esperado que apreendamos a necessidade de mudar, buscando o conhecimento e usar a visão ao serviço do bem, a partir do momento em que ultrapassamos o choque (“as trevas” que nos inundam os olhos, como ao prisioneiro libertado) de nos confrontarmos com o comentário que estas alegorias pretendem veicular (ao regressar do sol). Neste âmbito, o final de “Blindness” – e do livro de Saramago –, embora apresentem a estrutura divergente, pretende veicular este mesmo pensamento: denota-se a situação contrária, na medida em que, depois de resolvida a trama, ultrapassado o carácter catastrófico, e recuperada a visão (biológica e metafórica), é que a líder com visão se apercebe de toda a dimensão das experiências motivadas pela epidemia; quando antes se deixava mover pela sobrevivência, depois dá-se a uma tomada de consciência, abrupta e extrema, das aprendizagens efectivadas durante todo aquele processo de educação – confronta-se, não com a possibilidade de se atingir o conhecimento verdadeiro e daí retirar-se a definição de bom (como na Alegoria da Caverna de Platão), mas com demonstrações múltiplas do que o que o ser humano consegue significar de pior. São, porém, algo paradoxalmente, estas as razões pelas quais deriva a necessidade e a relevância de uma e outra alegoria: assumir-se as limitações do ser humano (de ver para alem da ilusão e das aparências) e desconstruí-las numa perspectiva catártica – conhecer a verdade e o bem é possível, da mesma forma que o é, tornar a aprender a ver. 

*este foi um trabalho realizado no ano lectivo 2008/2009, na Universidade Católica Portuguesa - Porto

6 Comments:

  • Puxa, obrigado pelo cuidado e pela seriedade da resposta!

    como o prisioneiro-filósofo, virá a constituir as características do líder ideal, cuja visão, num contexto de cegueira, pode ser interpretada como a posse de conhecimento, vantagem que usa em favor dos outros e da comunidade que lidera (efectivando a sua liderança de uma forma prática e funcional, enfatizando a ideia de que a efectua de uma forma altruísta e não gananciosa)

    Muito interessante esse ponto de vista... a visão como posse do conhecimento... e o conhecimento como privilégio e sapiência! Como que a ingenuidade e a ignorância fossem mais fáceis e até desejadas, só porque o conhecimento nos obriga a agir... Mais uma vez obrigado... vou amadurecer a ideia e quem sabe eu volte com algum pensamento...

    By Anonymous Anónimo, at 3:49 da tarde  

  • Não queria dar esse trabalho...

    By Anonymous Anónimo, at 3:50 da tarde  

  • Ui, andaste a ler Platão?! ... E que tal, aconselhas ou é assim um bocadinho difícil para gente normal, ou menos um bocadinho, como eu ?...

    By Blogger esse, at 2:46 da tarde  

  • Obrigada, antes de mais, às duas pelo feedback. Passando, agora, à retribuição:

    @Mônica:
    Não deu trabalho, pelo menos, no momento de publicar aqui no blog, já que se tratava de um excerto de um trabalho que fiz, há uns meses. Achei engraçada a coincidência do repto que lançou corresponder, em alguma medida, a um tema sobre o qual me tinha debruçado no referido trabalho. Espero que não tenha sido muito chato de ler e tenha correspondido, igualmente, às suas expectativas ;)

    @esse:
    Não li "A República" toda, só o livro VII, correspondente à Alegoria de Platão - mas imagino que tentar ler a obra inteira possa ser um significativo catalizador de demência precoce. No entanto, não o digo por ser difícil de ler, por si só - pelo menos avaliando o excerto que trabalhei -, mas por ser exaustivo no seu carácter referencial. Explico: não contém vocabulário complicado, inclusivamente o autor descreve as alegorias de forma que chega a aproximar-se do "naif", de tão aparentemente simples (ou simplista); no entanto, a escolha de palavras é rigorosíssima, e tudo a que se refere, todos os conceitos que invoca, fá-lo com objectivos precisos de extrapolação - por isso é que usa uma linguagem tão aparentemente simplista: porque o objectivo dele não é desencadear uma compreensão literal, mas acentuadamente abstracta.

    No entanto, volto a ressalvar que tive um contacto muito reduzido com o texto... mas aproveito, e acrescento: se eu consegui ler, queres prova melhor de que, para ti, vai ser canja? ;)

    By Blogger Aspirante, at 3:13 da tarde  

  • Correcção: Alegoria da Caverna, e não Alegoria de Platão. Tantas vezes se revêem os textos, e mesmo assim erros persistem. Mil desculpas ;)

    By Blogger Aspirante, at 3:17 da tarde  

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    By Anonymous Anónimo, at 7:53 da tarde  

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