Memoirs of a Geisha - Artigo Crítico
MEMOIRS OF A GEISHA
Ano: 2005
País: EUA
Realizador: Rob Marshall
Cast: Zhang Ziyi, Ken Watanabe, Michele Yeoh, Gong Li, Koji Yakusho, Youki Kudoh.
Site Oficial: http://www.sonypictures.com/movies/memoirsofageisha/
Baseado no romance internacionalmente aclamado de Arthur Golden, “Memórias de Uma Gueixa” narra a história de uma menina oriunda de uma pobre província japonesa, vendida pela família, entregue à sua própria responsabilidade, para trabalhar numa casa de gueixas. De escrava à mais bela e completa das gueixas, Sayuri (Zhang Ziyi) sobrevive agarrada ao seu sonho e seu amor de criança, conhecendo as dificuldades da inveja, do poder, da submissão, da cultura e da sua condição até que a II Guerra Mundial abala o Japão.
Antes ainda de se conhecerem as premissas do filme, o título promete excentricidade e diferença a todo o tipo de públicos – do curiosos ao sensível, do crítico ao consumista, do realista ao fantasioso – pelo que as reacções se multiplicam, embora se possam antever alguns resultados comuns.
Poderia dizer-se, parafraseando Andy Malafaia, crítico da imprensa estrangeira, que o filme “Memórias de uma gueixa” se parece com a “história da gata borralheira recontada”. Efectivamente, não é no conteúdo romântico que o filme potencializa a sua genialidade - deparamo-nos com uma história consistente e muitíssimo bem construída que se esvai em desilusão num final esperado por quase todos, talvez desejado por alguns, mas utópico e irreal aos olhos de todos.
Desta forma, as grandes armas do filme parecem consistir em aspectos técnicos e culturais, apesar de, também a este nível, a unanimidade avaliativa deixar a desejar, pois aquilo que parece ser uma agradável oportunidade de conhecimento da cultura oriental por parte dos ocidentais é polémico e ofensivo para os orientais, que lamentam escolha de actrizes chinesas para o elenco, denunciam a adulteração dos kimonos para figurarem mais atractivos e sexys e, por isso, mais vendáveis, condenando, igualmente, a adulteração de danças e músicas tradicionais japonesas.
Aos olhos de uma leiga, o filme exulta a beleza e costumes de um país – oferecendo indescritíveis momentos de exímia qualidade fotográfica – esgrima com audácia através de meandros culturais e sociais – colocando em questão os significados mais tácitos – e arrisca-se na intensidade das personagens e das relações.
Com efeito, no domínio sócio-cultural, “Memórias de uma gueixa” constitui uma oportunidade privilegiada de conhecimento através do contacto com os lugares, com os contextos, com o guarda-roupa, com os costumes, com os valores. Aliás, para quem “gueixa” é mecânica e automaticamente conotado com prostituição de luxo, o filme tem o poder de, pelo menos, questionar as nossas certezas e questionar o absoluto que teimamos proteger, nomeadamente destrinçando entre ambos os termos de forma clara - ser gueixa passa a ser encarado pacificamente como uma forma de arte que implica condicionalismos marcados que moldam a vida psicológica, emocional, física e humana. E falamos de um processo de modelagem que chega a roçar a materialização e comercialização do que é ser. Atrever-me-ia ia a dizer, correndo o risco de ser censurada por alguns dos valores que me regem enquanto pessoa, que ser gueixa é produto de relações de respeito.
Tratando-se de um tema que pouco apela à compreensão empática da realidade apresentada, a obra adquire o crédito de sensibilizar o público para esta vertente cultural através da exploração dos sentidos – o estimulo estético e visual, a sonoridade e musicalidade, os odores transmitidos, as texturas do espaço – e da vivência fortemente emocional que oferece. É através da evolução e desenvolvimento das personagens, admiravelmente construídos, que a dimensão temporal vai ganhando a força de nos apresentar mais do que aos contextos, aos sonhos e aos medos. É na viagem de permanentes idas e regressos entre meios e fim, entre passado e futuro, que reside a progressão e desvanecer do sonho, não pelo desencanto pelo fim desejado, mas pelo conhecimento e maldade dos meios. De pequena Chiyo à bela a madura Sayuri, o elixir da vida aparece como a persecução do amor do Chairman, do afecto perdido desde cedo, apenas possível pela entrada no mundo de ceda, harmonia e feminilidade das gueixas. Mas se a fachada é bela e promissora, o interior recheia-se de rivalidades, invejas, sentimentos menos nobres legitimados por acordos tácitos entre negociantes. Alcançado o sonho que nunca chegou a ser, o fogo e a guerra desertam a criança novamente para uma vida de trabalho e realidade, mantendo-se a utopia da felicidade. É já mulher, com rugas apagadas de cansaço, condenada ao kimono desejado, que aprende a aceitar a resignação de viver num corpo objectizado, segundo regras milenares e sangrando/supliciando o coração ao destino. Não deixando de veicular ideais de respeito e resignação, o brilhantismo da história parece sair prejudicado em favor do “amor à primeira vista sempre possível”.
Ainda no que respeita à evolução temporal, mais direccionada para as questões sociais, é curioso presenciar os efeitos da guerra e do processo de americanização, tanto no que concerne à vivência popular japonesa, como também no que diz respeito à deterioração de conceitos e costumes.
Mais uma vez roubando palavras, desta feita à protagonista, resume-se à “história de uma mulher forte como a água, que mesmo na rocha cravou o seu caminho…”.