Violência sem sentido
2006 foi, em poucas palavras, um ano marcado pela violência, mais especificamente pela violência associada a confrontos religiosos, mais especificamente, pela violência associada a confrontos religiosos com ou entre grupos islâmicos. Iraque, Afeganistão, Palestina, Somália, ... Quase como um prenúncio do que nos espera para este 2007, um prenúncio de morte isto é, 2006 teve ainda tempo de terminar com o enforcamento "you-tubevisionado" de Saddam, para glória maior da civilização democrática (?).
É neste contexto que ninguém esquece ainda toda a comoção gerada em Fevereiro pela suposta "blasfémia" com que incorreram alguns jornais europeus ao publicarem 12 caricaturas do Profeta Maomé (quando o diário dinamarquês Jyllands-Posten publicou, pela primeira vez a 30 de Setembro de 2005, esses 12 desenhos, o facto passou quase despercebido). Os países muçulmanos responderam, com milhares de manifestantes nas ruas, por vezes em actos de violência. Foram concretizados atentados contra embaixadas de países nórdicos europeus, morrendo várias pessoas durante os protestos.
Mas como é que a sociedade ocidental se arranjou para clamar contra esta violência sem sentido? Bem, colocando o ónus da agressão junto dos órgãos mediáticos europeus, pela sua suposta insensibilidade e desprezo para com os valores culturais islâmicos.
A questão teve ainda eco no passado Outono com a controversa encenação da ópera Idomeneo na Deutsche Opera de Berlim. Nesta versão, o rei de Creta, Idomeneo, entrava em cena com as cabeças de Poseidon, Jesus, Buda e, alas, Maomé, distribuindo-as decepadas por quatro cadeiras.
Retirada de cartaz por receio de represálias islamitas, a obra subiu finalmente à cena em Dezembro, sob rigorosa vigilância policial. Sem problemas de maior.
Com este caso, a questão assaltava de rompante a produção cultural. Quão legítimo será que os produtores, criadores culturais auto-censurem as suas obras por medo (MEDO) das repercussões mediáticas? Ou, mais especificamente, das "repercussões islâmicas"?
O eco mais recente desta controvérsia encontra-se junto da série norte-americana (das melhores do género e de todos os géneros), "24", protagonizada por Kiefer Sutherland (na foto). Na semana passada, um grupo de muçulmanos americanos protestou contra um episódio da nova temporada da série por veicular estereótipos hostis ao Islão (nomeadamente, por retratar terroristas islâmicos a programarem um atentado nuclear).
Porque o contexto não é bem o mesmo, não se espera que os produtores da série tenham uma resposta semelhante aos da peça operática alemã - isto é, suspendam o programa, até amainar a situação. Até porque os muçulmanos americanos são um grupo politicamente irrelevante nesse País. No entanto, o assunto não deixa de merecer uma reflexão cuidada por todos nós.
Primeiro, será que uma série de televisão ou um espectáculto cultural devem proceder a uma análise cuidada dos seus próprios conteúdos, para verificarem se não contribuem a um indesejável ciclo de ódio e racismo, seja de que variação étnica se revestir. A resposta é, claro que sim. O poder (mediático) implica grande responsabilidade, já dizia o Homem-Aranha. Mas, então, deveremos reprimir estas rotulagens óbvias e fáceis, nomeadamente legislando contra? A resposta é, claro que não. Se eu quiser produzir uma série de televisão patrocinando todo o género de estereótipos e preconceitos sociais, estou no meu direito total, como membro integrante de uma sociedade democrática supostamente esclarecida. Desculpem-me os fãs, mas o "24", por exemplo, faz obviamente isso, como tantas outras, melhores ou piores, séries e filmes policiais americanos.
Então o que é que podemos e devemos fazer? Claramente, denunciar, protestar, propor alternativas e, finalmente, se nada mais resultar, simplesmente desligando o canal ou sair da sala de cinema. Os americanos que se divirtam entre eles.
PS: O que o espectáculo Idomeneo fez não é bem a mesma coisa que a série "24" faz. A ópera propôs uma re-conceptualização "artística" da visão de Mozart sobre a opressão religiosa; não se preocupando exclusivamente com a religião islâmica. A série "24" explora os preconceitos americanos pré e pós 11 se Setembro, reflectindo e veiculando aquilo que são as imagens primordiais negativizadas do muçulmano na maior potência ocidental.
É neste contexto que ninguém esquece ainda toda a comoção gerada em Fevereiro pela suposta "blasfémia" com que incorreram alguns jornais europeus ao publicarem 12 caricaturas do Profeta Maomé (quando o diário dinamarquês Jyllands-Posten publicou, pela primeira vez a 30 de Setembro de 2005, esses 12 desenhos, o facto passou quase despercebido). Os países muçulmanos responderam, com milhares de manifestantes nas ruas, por vezes em actos de violência. Foram concretizados atentados contra embaixadas de países nórdicos europeus, morrendo várias pessoas durante os protestos.
Mas como é que a sociedade ocidental se arranjou para clamar contra esta violência sem sentido? Bem, colocando o ónus da agressão junto dos órgãos mediáticos europeus, pela sua suposta insensibilidade e desprezo para com os valores culturais islâmicos.
A questão teve ainda eco no passado Outono com a controversa encenação da ópera Idomeneo na Deutsche Opera de Berlim. Nesta versão, o rei de Creta, Idomeneo, entrava em cena com as cabeças de Poseidon, Jesus, Buda e, alas, Maomé, distribuindo-as decepadas por quatro cadeiras.
Retirada de cartaz por receio de represálias islamitas, a obra subiu finalmente à cena em Dezembro, sob rigorosa vigilância policial. Sem problemas de maior.
Com este caso, a questão assaltava de rompante a produção cultural. Quão legítimo será que os produtores, criadores culturais auto-censurem as suas obras por medo (MEDO) das repercussões mediáticas? Ou, mais especificamente, das "repercussões islâmicas"?
O eco mais recente desta controvérsia encontra-se junto da série norte-americana (das melhores do género e de todos os géneros), "24", protagonizada por Kiefer Sutherland (na foto). Na semana passada, um grupo de muçulmanos americanos protestou contra um episódio da nova temporada da série por veicular estereótipos hostis ao Islão (nomeadamente, por retratar terroristas islâmicos a programarem um atentado nuclear).
Porque o contexto não é bem o mesmo, não se espera que os produtores da série tenham uma resposta semelhante aos da peça operática alemã - isto é, suspendam o programa, até amainar a situação. Até porque os muçulmanos americanos são um grupo politicamente irrelevante nesse País. No entanto, o assunto não deixa de merecer uma reflexão cuidada por todos nós.
Primeiro, será que uma série de televisão ou um espectáculto cultural devem proceder a uma análise cuidada dos seus próprios conteúdos, para verificarem se não contribuem a um indesejável ciclo de ódio e racismo, seja de que variação étnica se revestir. A resposta é, claro que sim. O poder (mediático) implica grande responsabilidade, já dizia o Homem-Aranha. Mas, então, deveremos reprimir estas rotulagens óbvias e fáceis, nomeadamente legislando contra? A resposta é, claro que não. Se eu quiser produzir uma série de televisão patrocinando todo o género de estereótipos e preconceitos sociais, estou no meu direito total, como membro integrante de uma sociedade democrática supostamente esclarecida. Desculpem-me os fãs, mas o "24", por exemplo, faz obviamente isso, como tantas outras, melhores ou piores, séries e filmes policiais americanos.
Então o que é que podemos e devemos fazer? Claramente, denunciar, protestar, propor alternativas e, finalmente, se nada mais resultar, simplesmente desligando o canal ou sair da sala de cinema. Os americanos que se divirtam entre eles.
PS: O que o espectáculo Idomeneo fez não é bem a mesma coisa que a série "24" faz. A ópera propôs uma re-conceptualização "artística" da visão de Mozart sobre a opressão religiosa; não se preocupando exclusivamente com a religião islâmica. A série "24" explora os preconceitos americanos pré e pós 11 se Setembro, reflectindo e veiculando aquilo que são as imagens primordiais negativizadas do muçulmano na maior potência ocidental.
2 Comments:
Ressalto, da leitura do artigo, a reflexão à qual me obrigou acerca do poder dos meios de comunicação na (des)educação de todos!
Parabéns pela análise!
Um abraço...
By Unknown, at 9:14 da tarde
Não dá para dar uma opinião aprofundada porque não acompanho "24"...
Mas é importante pensar no que a Whisper fala... que até o cinema influência a nossa opinião acerca da realidade... Tem que ser critico mesmo!
E tem outra coisa, o mundo está cada vez mais violento!
By Anónimo, at 9:20 da tarde
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